segunda-feira, 27 de outubro de 2008

O senhor e a Guerra Civil Espanhola

O relógio marca dez horas da manhã. Ele está sentado num banquinho de uma praça. Parece até que espera ansioso alguém chegar. O senhor está com uma calça cinza, uma camisa azul bebê, um colete de lã bege por cima e uma boina xadrez. Com uma aparência de 87 anos, ele segura um jornal com uma mão e com a outra a sua bengala. O seu olhar só se desvia do jornal quando ela se aproxima. Ele sorri tranquilamente. Ela com aparência de 84 anos senta cuidadosamente ao seu lado e começam a conversar, entre tosses e risadas. Depois de vinte e cinco minutos, ela se levanta cuidadosamente, se despede e caminha uns 30 passos pequenos até a porta da sua casa, exatamente atrás do banquinho que estou sentada. Ele ainda a olha com um sorriso. São amigos, ou paixão nunca vivida. Ele volta a ler o jornal. Página por página. Quando termina, sou eu quem está sentada ao seu lado. Ele me olha com cara de espanto.

- Você é aquele menina jovem que estava sentada naquele banco! Fala ele apontando para frente.
- Sim, sou eu.
Ele olha para o banco vazio, arruma a boina e deixa o jornal de lado.
- Você tem cara de italiana!
- Haha! Que raro! Minha mãe é italiana!
- Acertei! diz ele com um sorriso de avó.
- Não. Eu sou brasileira! Minha mãe é italiana e meu pai espanhol.
- Teu pai é espanhol????
- Sim, de Zaragoza!
- Ah, ele é maño.
- Si!
- Os maños são assim: pessoas muito boas, mas tem uma cabeça turrona!
- É, eu sei.
- Você mora com seus pais?
- No Brasil sim, aqui não. Moro sozinha.
- E o que você faz em Barcelona?
- Vim dar um tempo, pensar na minha vida.
- E já pensou?
- Demais.
- O tempo que mais pensei na minha vida foi na guerra civil espanhola. Tinha 17 anos. Você sabia que aqui foi a primeira cidade espanhola atingida pelas bombas?
- Sei, tem até as marcas das bombas numa igreja perto de uma antiga escola, não?
- Isso! Lá foram as primeiras bombas. Eu morava ali do lado. Minha mãe estava comigo e com meus 2 irmãos mais novos. Aquele dia, meu pai que era republicano, acordou cedo e disse a minha mãe que maus ventos estavam chegando. E por isso pediu a minha mãe que ninguém fosse para escola naquele dia. Saiu de casa para ir até a casa do tio Jordi, que tinha um rádio e todo os amigos do meu pai e do meu tio, que eram também republicanos iam todos os dias lá para escutar as notícias. Foi bem nesse tempo, que os aviões começaram a soltar as bombas. A minha mãe já estava preparada com todos os colchões de nossas camas ali bem perto de nós na sala. Quando escutamos a primeira bomba, mamãe nos colocou embaixo de 4 colchões. Assim, se a parede caísse, não nos machucaria.
- A minha avó também fez isso!!!!!! A minha tia já me contou isso várias vezes.
- Mas em Zaragoza?
- Não sei direito. Porque meu pai morou aqui dois antes de ir para o Brasil. Se bem que meu pai não era nascido na guerra. Deve ter sido em Zaragoza.
- Você consegue imaginar isso daqui há tempos atrás cheio de gente se matando?
- Não. Deve ter sido muito triste.
- E foi. Porque a Espanha foi um palco da guerra. Porque Franco pediu ajuda para Alemanha e para Itália. E os republicanos aos russos. Imagina a baderna que virou a Espanha. Todo mundo aqui lutando. Muita gente morreu, mais de 1 milhão de pessoas!!! E dentro delas, meus dois melhores amigos.
- ahhhhhhhhh
- É nena, não precisa chorar e nem ficar triste. Já passou.
- Desculpe. Não me contive. É que imaginei eu perdendo meus dois melhores amigos numa guerra aos 18 anos. Acho que eu teria morrido junto.
- Você não morreria!
- Acho que sim!!!
- Não nena. Você faria como eu. Lutaria por eles. Lutaria para um país melhor. Lutaria para acabar com a vida daqueles hijos de puta malditos!
- E seus pais e seus irmãos?
- A minha família ficou bem. Passamos fome, ficamos pobres. Não podíamos nem falar catalão na rua. Sabia disso?
- Sabia! Eu admiro os catalaes por isso. Vocês passaram por tempos muito tristes e resistiram!
- Claro! Hay que luchar siempre! Até agora eu luto com essa bengala maldita.
- hahahahahaa
- Você ri né? Sinto saudade de andar por ai só com minhas pernas. E agora isso. O mundo de novo em crise. Onde vamos parar?
- Eu é que te pergunto!
- Eu já não sei mais nada. As pessoas todas estão loucas. Olha o cabelo dessa nova geração!!!
- É um pouco moderno demais. Falo eu
- Moderno? Isso é ridículo!!!
- hahahaha

Ele se levanta e se despede. Beija minha mão. Diz que tenho a idade de sua neta. Vai andando tortamente com sua bengala em direção a calle Diputacio. E eu fico olhando para os prédios, pensando que não deve existir coisa pior do que passar por uma guerra, mas que às vezes, depois que ela passa, coisas boas surgem. Há diferenças entre um povo que passou por uma guerra daquele que nunca imaginou que possa ter existido uma. E isso você só percebe quando vive num país pós-guerra.

3 comentários:

Anônimo disse...

Parabéns Mariana, revivi essa história. Acho que esse fato da familia aconteceu em Mataró,Cataluña. Ai perto, a casa dos teus avos foi derrubada por bombas e os bombeiros após retirarem os escombros acharam tua avô e teus tios embaixo de uma escada de cimento que sobrou enrolados em colchões e estavam vivos. Adorei a história. Papai,ASL

Mari disse...

Eiiiiii, a Tia Carmen nunca me contou essa parte. Só tinha me dito que a yaya enrolava eles nos colchões. Madre mia!

Kel disse...

Que bonitinho...sempre achei o amor na terceira idade muito fofo, mas depois de ler "O Amor nos tempos do cólera" percebi que ele é realmente uma conquista, uma vitória sobre o preconceito. E olha a metáfora disso na tua vida. Consigo ver a cena perfeita. Terminar o jornal (jornalismo???) e ver voçê ao lado (o amor jovem). A história da querra (jornalismo???), dos seus pais (sua história aqui ou em qualquer lugar porque faz parte do seu sangue acima de tudo), o idioma (vida fora), crisis (o que vai ser de nós amamanha?). Ai, chega, isso virou uma carta!
Força hoje e sempre, amiga.
Beijos e vai lá que é tua!!!